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Um sonho de Natal

 

Da encosta da montanha, descia um vento gelado que cortava os ossos, acompanhado de uma chuva manhosa que escorria pelos corpinhos das crianças. Pelas valetas, uma torrente de água limpava as cascas de laranja que os miúdos da escola levavam para o intervalo do almoço.

Os alunos da quarta-classe saíam da escola do professor Cardozo, numa algazarra libertadora, ao fim de tantas horas em frente à ardósia riscada pelos números da tabuada e pelas palavras difíceis da cópia.

A tabuada, sempre a tabuada, usada para agilizar a memória dos que sonhavam com a mercearia do sr. Machado, empresário que deitava a mão aos rapazes mais espertos para torná-los homens e concorrentes em negócios. Da História e da Geografia, decoradas a muito custo, era a lenga-lenga das dinastias, rios, serras e capitais de distrito, obrigações difíceis de fixar. Ainda se fossem as ribeiras que correm, esporadicamente, pelas nossas encostas, ou o nome das lagoas da serra... Agora nomes de reis e rainhas, batalhas e castelos, combóios e linhas férreas... será que no continente os alunos também aprenderam o nome dos botes e das lanchas que vão à baleia e trazem o sustento para as nossas casas, ou sabem o quanto penamos quando o mar vem cá acima e enche os caminhos de junco e de pedras que nem se podia sair à rua...

Parado numa valeta, com a água a lavar-lhe os pés, José magicava apanhar, um dia, o navio Lima com destino ao horizonte.

Já vira seu pai partir para a América e de lá nunca mais voltara.

“Pelo Natal ainda se lembra de mandar umas “dólas” para o jantar da festa, mais uma fotografia junto da casa e do carro, mas abandonou-nos p'ràqui! Nã!...também não vou ficar neste pedaço de terra, comendo espinhas de chicharros e bebendo água do poço...”

A noite caía. José agarrou na mala que deixara no saguão da escola e foi, lentamente, até a casa.

“Lava-te e arranja-te para irmos pr'á novena“ - ordenou-lhe a mãe.

Josefa era uma mulher corpulenta, cabelos grisalhos, aparentando cinquenta anos. O marido deixara-a com cinco filhos, todos pequenos – dois rapazes e três raparigas – e ela vivia numa labuta constante. Ia, diariamente, à Mouraria, manhã cedo, fizesse sol, fizesse chuva, lavar as roupinhas dos seus meninos, pois não havia água salobra que deixasse os fatinhos mais brancos. “Pobrinhos, mas limpinhos!” - dizia - “O resto fica à conta de Deus e de Nossa Senhora de Lurdes, que melhores dias virão!...”

Ao longe, os sinos repicaram para a Novena do Natal. 

Josefa vestiu as crianças de lavado, com roupinhas usadas que o marido lhe enviara nas sacas da América e saíram para a igreja.

Ao tempo chuvoso, juntaram-se os vagalhões que cobriam o Caneiro do porto, espalhando, por terra dentro, o rossio do mar.

Coberta com xaile preto que não mais largou desde que o marido emigrara, Josefa chegou a si os pequeninos e caminhou, lentamente. Só José, o mais velho, seguia apressado, indiferente à chuva. “Vai, vai! que o sr. Padre pode precisar de ti para acenderes as velas. E não te esqueças de vestir a opa e de te portares bem.”

Ao entrarem no templo, só a vela do Santíssimo, no altar-mor, alumiava os fiéis. Todo o cenário de luz, alegria e música estava reservado para a celebração litúrgica. Aos poucos, a igreja enchia-se: homens à frente, mulheres atrás, acompanhadas dos mais pequeninos e das moçoilas.

Josefa ajoelhou-se como habitualmente, junto à grade, e ajudou os filhos a fazerem o sinal da cruz. Depois de uma breve oração, sentou-se.

Na sacristia, o velho Pe. Moniz, de capa branca, manda o sacristão tocar a campainha. Acendem-se as luzes e, do coro alto, o órgão e a capela saúdam o  “Infante suavíssimo”.

Com a opa vermelha quase a tocar os pés, José carrega o turíbulo ciente da função do aroma do incenso que inunda o templo.

A novena natalícia tem um sem-fim de orações, ladainhas e músicas em latim que os fiéis não entendem. Só o longo e empolgado sermão do Pe.

Moniz despertou a atenção dos crentes.

Extenuado das correrias da escola e do avanço da noite, José aconchegou-se a um degrau da escadaria do altar e começou a dormir um sono que o fez sonhar nas prendas que o Menino Jesus nunca lhe trouxera.

Finda a cerimónia, o miúdo deitou-se ao caminho escuro, só iluminado junto à montra da loja do sr. Machado. Com o nariz encostado ao vidro, apreciou, uma vez mais, o carrinho de lata vermelho, igual ao “espada” que seu pai tinha na fotografia da América.

“Um dia hei-de ter um carro igual a ti, mas verdadeiro.” - pensava assim, quando alguém lhe segurou no braço.

“Vamos, José! Depois da festa, vamo-nos embora para a América e lá o Natal será mais alegre!...” - segredou-lhe Josefa.

“Deus te ouça, Mãe, Deus te ouça!”. 

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